O mito da moralidade israelense espatifou-se


O ataque de Israel a uma flotilha internacional – matando nove pessoas e ferindo dezenas – não é o primeiro exemplo de uso de força face a atos de resistência não-violenta de palestinos e simpatizantes. Longe disso. Mas a chacina da flotilha é o primeiro ataque direto e oficial do exército de Israel a ativistas estrangeiros, elevando a um nível sem precedentes a reação israelense contra ações de solidariedade.

Por Lamis Andoni, na Al Jazira*

A alegação israelense, de que os ativistas turcos "resistiram" à ocupação dos navios, não muda a realidade: Israel perpetrou uma operação armada ilegal contra os militantes que desafiavam o bloqueio de Gaza – não com armas, mas tentando entregar comida e medicamentos à piopulação palestina assediada.

A impunidade israelense já ficou demonstrada nos casos dos pacifistas ocidentais Rachel Corrie e Tom Hurndell. Ambos foram mortos quando contestavam pacificamente as ações de guerra contra cidadãos palestinos.

Um ato de medo


Porém a reação de Israel não foi apenas um arroubo de arrogância. Foi também um gesto de medo e fraqueza, diante da maré montante das campanhas civis dentro e fora da Palestina.

Os temores israelenses chegam a ponto de dispender dinheiro e energia em uma campanha mundial contra o que considera um movimento "visando deslegitimar" Israel.

Contudo, as próprias ações de israel, como o ataque aos navios com ajuda, só servem para reforçar a imagem de um Estado comprometido com ações ilegais nos territórios ocupados – e fora deles.

A resação israelense a protestos não-violentos, dentro e fora dos territórios ocupados, faz parte de seu medo da afirmação da identidade palestina dentro das terras históricas da palestina.

Depois de ser criado, em 1948, Israel colocou a população árabe-palestina sob uma severa disciplina militar, proibindo que se ensinasse história, a poesia e as músicas árabe-palestinas.

Aqueles que desafiavam o veto eram presos, ou, no caso do poeta Mahmud Darwish, forçados ao exílio, para poderem expressar com liberdade os anseios de uma nação confiscada.

Ao fim da ocupação da Cisjordânia e da faixa de Gaza, em 1967, Israel investiu contra os líderes políticos palestinos. Estes eram arrebanhados e simplesmente deportados para a Jordânia.

Em 1974 Israel "autorizou" eleições municipais apenas para deportar os vitoriosos, quando forsam eleitos apoiadores da OLP (Orgnização de Libertação da Palestina). Extremistas israelenses atacaram dois dos prefeitos eleitos, o de Ramalá e o de Nablus, mutilando os dois.

Nenhum dos eleitos tinha qualquer ligação conhecida com a luta armada. No entanto, pertenciam à intelectualidade palestina – entre eles Hanna Nasser, reitor da Universidade de Beir Zeit.

Deportação, prisão, assassínio


As deportações e prisões entraram como componentes de uma política sistemática para prevenir a emergência de uma liderança política independente na Cisjordânia e na faixa de Gaza ocupadas. Quanto aos de fora dos territórios ocupados – intelectuais asilados em Beirute ou embaixadores da OLP na Europa – o assassinato entrou em pauta durante os anos 1970.

Em 1972, um dos melhores romancistas palestinos, Ghassan Kanafani, foi morto por um carro-bomba. Em 1973, o poeta Kamal Nasser foi assassinado por um comando do Mossad, liderado por Ehud Barak, que hoje é ministro da Defesa. Ambas as operações aconteceram no coração de Beirute.

Até a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993, o hasteamento da bandeira palestina – e em certos casos até a exibição de uma de suas cores – eram atos que acarretavam punições. Jovens palestinos, ou até crianças, eram alvo de tiros, às vezes feridos e mesmo mortos por ousarem mostrar a bandeira em público. Nem gestos simbólicos sugerindo o reconhecimento dos direitos palestinos eram tolerados.

A resistência pacífica


Em 1988 a OLP convidou escritores, artistas e ativistas internacionais para uma viagem de navio com representantes da diáspora palestina deportada por Israel e dos refugiados. era uma simbólica viagem "de retorno".

Após intimidar com sucesso os armadores gregos, para que não alugassem uma embarcação à OLP, Israel bombardeou o navio obtido, que era cipriota, poucas horas antes que os ativistas da solidariedade – inclusive ocidentais, cristãos e judeus – subissem a bordo.

Porém o bombardeio de 1988, no auge da Primeira Infitada palestina, objetivava impedir a própria viagem. Ao passo que a ferocidade da operação armada contra a flotilha de Gaza sugere que Israel, mais do que nunca, está profundamente preocupado com o êxito dos métodos pacíficos de resistência.

Com razão, Israel enxergava o Comboio Gaza Livre como parte de uma campanha palestina e internacional não apenas para romper o bloqueio da estreita faixa de terra, mas para acabar com a ocupação e reconhecer os legítimos direitos nacionais palestinos.

Porém a ideia de que o uso da força militar pode conter a expansão da campanha é grotesca – a não ser que Israel pretenda dispersar todos os protestos, desde a aldeia de Bilin, na Cisjordânia, até Londres Berlim e San Francisco.

Israel já utilizou campanhas de relações públicas para demonizar e desmoralizar a crescente campanha de boicote – calcada em outra semelhante contra o regime racista da África do Sul.

Foi desfechada também uma campanha semanal de detenções e, cada vez mais, de disparo de tiros, atingindo ativistas palestinos, ocidentais e até israelenses que protestavam contra o muro ilegal da segregação, que devorava terras palestinas das aldeias de Bilin e Nilin.

O governo de Israel mostrou-se refratário às tentativas da ANP (Autoridade Nacional Palestina) para conter a expansão das colônias israelenses na Cisjordânia, inclusive em Jerusalém Oriental, e o aperto do bloqueio contra a faixa de Gaza.

O primeiro ministro de israel, Binyamin Netanyahu,queixou-se a George Mitchell, o enviado especial dos EUA ao Oriente Médio, de que a ANP fizera um lobby internacional para impedir o ingresso de Israel na prestigiosa OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico). Acusou o governo palestino de incitar a adesão a um boicote aos produtos dos assentamentos ilegais.

Uma mensagem


Enquanto isso, Israel arrogava-se o direito de praticar o que são essencialmente atos de violência – garantidos que são pela força militar – erguendo construções em terras confiscadas aos palestinos; deseja privar os palestinos, inclusive a ANP, dos meios para expressar suas demandas pacificamente.

Ironicamente, foi a Turquia que facilitou a admissão de Israel na influente OCDE. Apenas para ser recompensada, pouco mais tarde, com a chacina de turcos a bordo da flotilha.

Parece que Israel quis enviar uma mensagem, a aliados e adversários: dizer que não tolerará dissenções ou desafios, mesmo pacíficos.

Quando seus inimigos usam a força, Israel julga poder se apoiar em seu arsenal de tanques e bombas. Porém o que a incursão da flotilha mostrou foi que Israel também respondeu com uma ação militar a um ato de resistência não-violenta.

Singrando águas internacionais, sem escolta, os navios pareceram um belo alvo, contra o qual Israel poderia exercitar seu plano de ação predileto: os uso da força letal.

A Guerra de 2006 no Líbano e a de 2009 em Gaza revelaram os limites da supremacia militar israelense, quando se trata de alcançar objetivos políticos. O ataque à flotilha foi um desastroso tiro no pé.

As balas que trespassaram os corpos dos militantes foram como bumerangues: espatifaram o mito da moralidade israelense.

Na verdade, os apelos cada vez mais fortes pelo imediato fim do bloqueio de Gaza mostram que Israel fracassou e o Movimento Gaza Livre levou a melhor.

* A palestino-americana (nascida em Belém) Lamis Andoni há 20 anos é analista de temas palestinos e do oriente Médio, tendo entrevistado todas as figuras-chave do movimento; o texto foi obtido no site da TV árabe Al Jazira: http://english.aljazeera.net